quarta-feira, 16 de abril de 2014

Música Pseudointelectual


Alguns dias atrás, enquanto ouvia uma música de Luis Gonzaga no carro, eu comentei com um colega o quanto eu acho Luis Gonzaga genial e fantástico. A música em questão era "Cigarro de Palha".

Meu cigarro de paia
Meu cavalo ligeiro
Minha rede de maia
Meu cachorro trigueiro 

Quando a manhã vai clareando
Deixo a rede a balançar
No meu cavalo vou montando 
Deixo o cão a vigiar

Cendo um cigarro de vez em quando 
Pra esquecer de me alembrar 
Que só me falta uma bonita morena 
Pra mais nada me faltar


Letra excelente, não? Eu a acho fantástica.


Ao que o colega respondeu que, de verdade, quando ele pensa em um músico ou artista inteligente, ele se lembra do Renato Russo.

Eu quase vomitei as minhas tripas, mas não disse nada.

Embora hoje eu sou um velho implicante, mas já fui adolescente e, como todo adolescente da época, eu gostava de Legião Urbana (embora Renato Russo já estivesse morto há algum tempo então). Naquela época eu pensava que Legião Urbana era uma das melhores bandas do Brasil e que Renato Russo fosse um "genho"; no entanto, qualquer pessoa que pense um pouco sobre a música da banda percebe que as letras são pseudointelectuais, burras mesmo. Calma, não me crucifique. Deixe-me explicar:




Parece cocaína, mas é só tristeza
Talvez tua cidade

Muitos temores nascem do cansaço e da solidão 
E o descompasso, e o desperdício, 

Herdeiros são agora da virtude que perdemos 
Há tempos tive um sonho: não me lembro, não me lembro 

Tua tristeza é tão exata e hoje o dia é tão bonito 
Já estamos acostumados a não termos mais nem isso 

Os sonhos vêm e os sonhos vão, o resto é imperfeito


Repare no naipe deste lixo. Contemple, caro leitor. 


Você deve conhecer essa música -- a não ser que você more em Marte ou seja algum adolescente ranhento --, chama-se "Há Tempos". Ela usa palavras que um homem do sertão como Luiz Gonzaga nem sonharia em usar em suas músicas, por exemplo: "virtude" e "descompasso". Porém, inteligência não se mede por número de palavras sofisticadas que uma pessoa é capaz de usar. Inteligência é compreensão; é ser capaz de ler o interior das coisas e extrair sua essência. (é o nome deste blog, por sinal: a palavra inteligência refere-se a "Intus Legere", termo latino que quer dizer, grosso modo, intuição, ler o interior das coisas.)

De todo modo, o que exatamente há de inteligente na letra de "Há Tempos"?

Vamos forçar um pouco e supor que o autor esteja falando (de um jeito bem estranho e desconexo) da decadência das virtudes humanas nos tempos atuais ou do desespero que leva até mesmo a esquecer os sonhos, blá blá blá, nhem nhem nhem. Maneiríssimo. Porém o que a TALVEZ TUA CIDADE tem a ver com isso? E o que é que parece cocaína, mas é só tristeza? O amor, a vida, o universo? Tudo o mais?  Como os sonhos vêm e vão para o eu lírico se ele já não parece ter mais o seu sonho? Perguntas que ficarão eternamente sem resposta não só porque o inditoso autor jaz morto, mas também porque foram feitas para parecer inteligentes e não para de fato serem compreendidas.

Há um eu lírico e há um tu lírico na música. Os dois parecem decadentes e desesperados, a julgar pelas virtudes perdidas. Vamos continuar a partir dessa premissa:



Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes 
Teu grito acordaria não só a tua casa 
Mas a vizinhança inteira 

E há tempos nem os santos 
Têm ao certo a medida da maldade
E há tempos são os jovens que adoecem

E há tempos o encanto está ausente 
E há ferrugem nos sorrisos 
Só o acaso estende os braços 
A quem procura abrigo e proteção


Vejamos: o tu lírico demonstra a sua dor, que se pudessem ser expressado por sua voz, despertaria toda a vizinhança. Está certo, a atmosfera da música é de angústia. Depois a letra passa a pregar o fracasso das virtudes (a bondade, a saúde, o encanto, os sorrisos) e dos virtuosos (os santos e os jovens). Até aqui, nenhuma crítica da minha parte; mas logo depois está uma das evidências mais absurdas de o quão ridícula e contraditória uma letra pode ser:



Meu amor! 
Disciplina é liberdade 
Compaixão é fortaleza 
Ter bondade é ter coragem 

(Ela disse)
Lá em casa tem um poço
Mas a água é muito limpa 



PERA. PÁRA.

COMO pode a música passar de um hino ao desespero a um ode à esperança, sem mais nem menos? O sujeito estava deprimido e tudo mais. Falava da decadência das virtudes e, de repente, começa a falar bem delas. Que é isso? Decida-se, mano.

No entanto, se você ouve Legião Urbana há algum tempo e parou para analisar a maioria das letras, deveria saber que esse estilo é típico deles. Eles eram capazes de fazer letras coerentes, por exemplo "Faroeste Caboclo", "Eduardo e Mônica", "Pais e Filhos" e "Vento no Litoral". Por outro lado, eram capazes de um 
pseudointelectualismo lixoso sem par: "Teatro dos Vampiros", ou em "Eu sei", que são um exemplo mor da arte afetada e medonha.

Aliás, outro mau exemplo digno de nota é "Índios". Um monte de estrofes que, sozinhas, fazem sentido, são bonitinhas, mas que no todo fazem pouco sentido. Suponhamos que a música seja uma alusão ao estado do mundo moderno — DE NOVO — em analogia com os índios do passado e sua relação com o homem branco; então que RAIOS o refrão, supostamente a cereja desse bolo, quer dizer? 




Eu quis o perigo e até sangrei sozinho, entenda
Assim pude trazer você de volta pra mim

Quando descobri que é sempre só você 
Que me entende do início ao fim. 

E é só você que tem a cura pro meu vício 
De insistir nessa saudade que eu sinto 
De tudo que eu ainda não vi



Como é que o eu lírico passou de um índio roubado a um apaixonado com dor de cotovelo?


Inteligente, né? Não, eu acho forçado.


Melhor parar por aqui. Só para deixar claro, não odeio Legião Urbana nem odeio todas e quaisquer letras incoerentes. Ouço um monte de músicas com letras sem sentido e gosto de um monte de gente que diz um monte de coisa sem sentido, então não costumo reclamar de falta de coerência... como diria Renato Russo, acho que já estamos acostumados a não termos mais nem isso.


Eu disse que eu seria sucinto. Acredite, eu tentei